Foto: Bruno Bartoline
A ideia da retomada do Centro do Rio de Janeiro é muito bem vinda, sobretudo por apontar uma agenda positiva para a cidade, após os últimos anos de paralisia e desculpas diante dos problemas. A prefeitura criou o site Reviver o Centro para coletar contribuições para esta iniciativa e pretende ter um projeto em abril deste ano. As reflexões a seguir pretendem contribuir para esta construção.
Na busca por essa retomada, é preciso não perder de vista o contexto de crise econômica e da epidemia da covid-19, assim como as características e dinâmicas históricas da região central. Nesse sentido, o Porto Maravilha, cuja área deveria fazer parte da estratégia de retomada, pode servir de inspiração com relação aos seus marcos legais sobre reconversão de imóveis, a promoção da atratividade da região, ao Plano de Habitação de Interesse Social, o uso de bens imóveis públicos e a forma de implementação das ações.
O esvaziamento do Centro tem relação muito forte com a crise econômica que afeta o país desde 2015. Na cidade do Rio de Janeiro, estes efeitos se agravaram após 2016 e seguem fortemente ainda hoje, tendo sido ainda mais aprofundados pela pandemia. A prefeitura, que vive uma situação de crise fiscal, sozinha, tem condições bastante limitadas para enfrentar ou mesmo reverter a situação econômica municipal. Mas é possível tomar inciativas para abrir caminhos para que a cidade mobilize forças e atraia recursos para sair da crise.
É preciso lembrar que na base desta crise está um modelo de urbanização que concebeu o Centro como local de trabalho, induzindo as pessoas a morar cada vez mais distante. A contestação desse modelo ganha, agora, novos ingredientes por conta da pandemia, que colocou muitas pessoas trabalhando em casa. Sobretudo em setores de serviços que ocupam grandes áreas de escritórios. Essa condição agravou o esvaziamento do Centro especializado, afetando o mercado imobiliário, bem como o comércio e os serviços, já que a demanda (os trabalhadores) agora está em casa. Alguns analistas apontam que este seria um novo cenário a provocar mudanças profundas no mercado de trabalho, afetando o setor imobiliário e a própria dinâmica urbana. No entanto, mesmo considerando que a atual situação deve perdurar até que os efeitos da vacinação em massa ocorram, talvez seja ainda muito cedo para saber quais mudanças e em qual intensidade vão efetivamente se consolidar, antes de falar em novo normal.
Nesse sentido, é preciso ter cuidado para adotar o momento da pandemia como pressuposto para elaborar parâmetros para a retomada do centro. Nesse momento, flexibilidade das regras e estímulo à diversificação são componentes estratégicos recomendáveis.
O que a pandemia demonstrou, de fato, é a fragilidade e a necessidade de romper com o modelo atual que segrega o centro como local de trabalho. Esse rompimento passa por construir a ideia do Centro como um bom local de moradia no imaginário da população. O que não parece tarefa difícil, atualmente. E, a experiência do Porto Maravilha contribuiu para essa mudança de visão. No entanto, lá foi necessário um grande esforço de transformação da urbanística e para jogar luz sobre sua riqueza cultural e histórica, material e imaterial.
No caso do Centro do Rio de Janeiro o esforço demandado é bem menor. A infraestrutura urbana necessita de manutenção e, talvez de investimentos pontuais. O Centro abriga grande parte da memória e da história da cidade, é farto e diversificado em termos de comércio, serviços e equipamentos culturais. Entretanto, estes, agora, carecem de demanda, já que os trabalhadores que formam seu público, entre segunda e sexta feira, ou estão trabalhando em casa, ou pior, estão desempregados ou desalentados. E neste cenário, de perda da renda dos trabalhadores e de falta de crédito para produção e aquisição de moradias, o desafio se mostra ainda maior. Por onde começar, então?
Abordagens como Desenvolvimento Orientado ao Transporte Sustentável (DOTS) e o Urbanismo Tático, por exemplo tem produzido experiências interessantes que conseguem gerar bons resultados a curto prazo. Isto é interessante para gerar confiança e sinalizar o potencial de estratégias mais complexas e de maior prazo de implementação. Imagine, por exemplo, se com a vacinação avançando rapidamente, daqui a alguns meses, nos finais de semana, as ruas do Centro forem dedicadas para pedestres e ciclistas e forma implantadas rotas cicloviárias seguras a partir da região da Tijuca e São Cristóvão, o que não demandaria grandes investimentos. Famílias indo passear no Centro, estimulando o funcionamento dos seus espaços culturais, restaurantes e bares. Isso poderia dar sobrevida ou pelo menos, perspectiva positiva, até que o adensamento de moradores comece a ocorrer.
E quem sabe, você, daqui a alguns anos, morando no Centro (ou no Porto), possa pegar uma bicicleta e fazer o caminho inverso, e ir ao Maracanã ou à Quinta da Boa Vista? E isso pode ser válido para conexão Centro – Zona Sul. E mesmo intra e inter outras partes da cidade. Essas práticas representariam novas forma de apropriação e uso do Centro e de sua relação com o restante da cidade.
As inspirações do Porto Maravilha podem vir da sua legislação, do Plano de Habitação de interesse social, e da forma de gestão. Claramente, não seria o caso de propor uma Operação Urbana Consorciada para o Centro. Mas, alguns dos conceitos e estratégias introduzidos pela Lei Complementar Municipal (LCM)101/2009, a LCM 143/2014 e Lei 5.78072014, podem contribuir bastante para a retomada do Centro. Uma grande mudança introduzida pela LCM 101 foi declarar a área como de uso misto, e reforçado pela Lei LCM 143/2014, pelo menos metade do potencial de construção, ou 2,5 milhões de m2 deve ser utilizado para uso residencial. A LCM 143/2014 também trata de incentivos para estimular a construção de residências na APAC Sagas, que é parte da área de intervenção do Porto Maravilha.
Esta lei criou critérios edilícios que facilitam a reconversão de unidades comerciais em residenciais, ao mesmo tempo em que preserva os elementos que conferem valor arquitetônico e urbanístico para as edificações. Ela estabelece mínimos para os componentes das unidades residências, permite remembramentos, desde que preservadas as fachadas e telhados, dispensa obrigatoriedade de garagens, unidades para porteiros e empregados, o que permite ampliar a área comercializável. Estes parâmetros poderiam ser estendidos para o Centro.
A questão do tamanho das unidades residenciais é objeto de controvérsia. No entanto, ela poderia ser equacionada, permitindo variação em relação à quantidade de unidades do empreendimento. Até dado limite de quantidade de unidades num edifício, poderia ser adotado um dado tamanho mínimo, o que pode permitir dar viabilidade ao empreendimento. A partir daí, quanto maior o número de unidades, maior o tamanho mínimo de cada uma. Assim, poderia ser evitada a perda de qualidade edilícia e urbanística.
Há também incentivos fiscais para a reconversão, como isenção de ITBI e de IPTU por um prazo determinado, dados pela Lei 5.78072014. Neste momento de crise fiscal, pode ser complicado falar de isenções fiscais. No entanto, elas podem, a depender do modo como se estabeleçam, induzir uma aceleração da tomada de decisão de investimentos na reconversão. Além disso, a perda de arrecadação daqueles tributos pode ser compensada pelos ganhos com ISS, com a retomada das atividades do comércio e serviços do Centro.
Infelizmente, por conta da crise econômica dos últimos seis anos, que estagnou o mercado imobiliário do Rio de Janeiro, á exemplo do país, os investimentos não ocorreram. No entanto, as profundas mudanças urbanísticas são definitivas e transformaram totalmente a visão sobre a área portuária. Sem dúvida que os investimentos virão aos primeiros sinais de melhora econômica. E a ideia de retomada do Centro pode ser estimuladora e estimulada pelo Porto.
Outra inspiração para a retomada do Centro é o Plano de Habitação de Interesse Social do Porto Maravilha, o PHIS-Porto, aprovado em 2015, após intenso processo participativo. O plano aprovou como meta, implantar 10 mil unidades de habitação de interesse social no Porto e Centro, sendo que estudos feitos pela Prefeitura e Cdurp à época já haviam identificado imóveis já desapropriados ou em vias de desapropriação por parte do município e outros pertencentes à união, que permitiriam construir cerca de 5 mil unidades, inclusive com projetos prontos para boa parte deles. Estes estudos poderiam ser retomados e revistos, o que permitira iniciar rapidamente a implantação de estratégias para construção de residências.
Um aspecto fundamental e prioritário seria avançar com a requisição dos imóveis da união, pois, poderiam vir sem custo para a prefeitura, dada a sua destinação. O estoque de bens imóveis públicos pode servir para alavancar investimentos por meio permutas e outras formas de alienação, neste momento em que a prefeitura capacidade de investimento limitada.
Um ponto central do Plano foi reforçar o conceito de uso misto – multiuso e multi-renda como parâmetro de uso e ocupação da região. O PHIS-Porto também previu a dispersão das unidades HIS por toda a região, em empreendimentos de uso misto de pequeno porte, para evitar a criação de “áreas de pobres e áreas de ricos”. De fato, a diversidade, mistura de usos e públicos deve ser valorizada e tomada como elemento focal da retomada do Centro e como estratégia de redução de desigualdades sociais e espaciais.
O Plano também prevê a criação de um Programa de Locação Social, que pode ter grande relevância para a ideia de retomada do Centro. A exemplo de outras cidades como Tóquio, Paris, Berlim, Londres, este tipo de programa consiste em oferecer moradias para aluguel, a preços acessíveis para populações de baixa renda. Nestas cidades, a Locação Social serve como política de acesso à moradia e, também como de economia urbana, como forma de conter o esvaziamento de áreas centrais.
No caso do Centro, a sua implantação poderia estar atrelada aos incentivos à reconversão, o que permitiria sinalizar demanda, e assim, atrair investimentos, acelerando o processo de adensamento populacional da área. De fato, a retomada do Centro deve abarcar também a área do Porto Maravilha
Outra inspiração diz respeito a forma de gestão das ações, que certamente demandarão muita integração entre órgãos da prefeitura na sua elaboração. E sua implementação demandará articulação entre o setor público, o privado e a sociedade civil. A implantação destas ações poderia ficar a cargo da Cdurp. A empresa tem experiência acumulada no relacionamento com os setores econômicos, sociais e culturais para promoção de desenvolvimento socioeconômico. Esse acúmulo também contribuiria para acelerar um programa de retomada do centro.
Como dito acima, a prefeitura tem pouco poder para intervir na crise econômica nacional, mas dados os potenciais da cidade, é possível encontrar e apontar caminhos de saída e atrair forças para uma retomada do desenvolvimento de modo a melhorar a qualidade de vida e reduzir as desigualdades no Rio de Janeiro.